Como é que eu vim aqui parar?
Aceitei o convite da minha cama, aberta, escancarada para mim. Os lençóis embrulhados nas mantas lembrando-me da última vez que saí dali à pressa.
Quando chego a casa ela mostra-se sempre disposta a me abraçar, a me aconchegar entre infinitas dobras.
Deito-me e fico a fitar o teto.
Olho-o da distância que ocorria naquele momento e atento no que acontece quando vejo. Experimento mover a cabeça mais para a frente, ponho mais uma almofada na nuca e o teto aparece-me mais desfocado… poderei aproximar-me para ver mais amplo? Poderei afastar-me para ver mais perto? E enquanto digo isto, poderei afectar-me pelo papel que roça na minha mão?
A minha cama é exemplar a acarinhar-me. A melhor sustentação da minha horizontalidade – em mais lado nenhum me sinto tão acompanhada no deitar: talvez seja o compromisso das costelas contra as traves através do colchão, talvez seja o peso específico das mantas – estão lá sempre três, mesmo quando faz calor que atiro para trás ou puxo para a frente adequando-as à minha necessidade de aconchego. Cada uma tem o seu peso e estrutura a ajustar-se às minhas pernas. Uma mais pesada fazendo sentir-se dos lados, outra mais leve roçando só nos pontos de contacto mais pontiagudos – os joelhos e os pés; outra ainda pouco larga que quando se enrola de um lado do corpo se desenrola do outro.
Quando me aproximo para ver mais amplo cada uma destas especificidades gira sobre mim, adere à minha pele numa aproximação específica. As costas desprendem-se do lençol de baixo em tensão pela pressão dos elásticos de lado. Por uns momentos o lençol acompanha o movimento para cima como se estivesse hesitante em deixar-me. Os olhos abrem mais à medida que se aproximam do que não querem deter, e apercebo-me que o movimento de aproximar e afastar está-me completamente incustrado da metáfora de tentar perceber cada coisa individualmente e o todo no seu conjunto. Posso aproximar-me sem que o meu corpo emane a vontade de compreender? Quantas vezes fiz esse caminho dentro de mim para ensinar os músculos que aproximar é perceber? E o peso dos lençóis nas minhas pernas? E a diferença entre o cerrado dos fios de algodão destes lençóis que estão agora na cama e os outros que estão para lavar? De a minha perna não ter pêlos agora e a aderência de cada fio e do espacejamento entre eles me revelar uma continuidade quase perfeita, como quando a língua embrulha iogurte grego ou quando consigo distribuir o peso dos ossos pelos tempos da música. Uma sensação espessa de continuidade, como os meus olhos viam agora o branco do teto fundindo-se na brincadeira de ver uma imagem com cada olho e perceber a altura em que se fundiam outra vez sem me preocupar em ver. Tenho a sensação de poder continuar a ser míope através das lentes. O potencial de foco mesmo ali ao lado só a precisar de um piscar de olhos que escolho não fazer. Olhar e não ver, e não deixar de ver, nem de pensar, nem de ser, nem de pulsar, nem de exercer, nem de continuar. Estou na terra de ninguém, mas infiltrada. Ninguém dá pela minha falta na terra de toada a gente. Ninguém dá pela minha falta na terra de toda a gente porque só ninguém pode perceber a minha falta no sítio onde estou porque só ninguém e eu pode estar na terra de ninguém. Neste momento ainda agora uso o pensamento abstracto. Trato ninguém como um sujeito porque olhei outra vez para a frase que escrevi, e por uma aventura gramatical encontrei um ninguém a quem me dirigir. Será este ninguém menos real que os meus lençóis? Por uns momentos proporcionou-me tanta solicitação como eles, fez-me percorrer uma distância entre mim e esse ninguém para me dirigir a ele, e essa movimentação traz-me a convicção de mim própria, como se me tocasse por dentro.
Pensar é tocar-se por dentro… causa um efeito específico nas fibras.
Essa distância que crio das coisas é a movimentação para trás Abarcar o segmento de percepção. Reconheço o movimento ondulante da coluna vertebral fazendo oscilar a cabeça para trás criando a distância entre mim e as coisas e para a frente tentando compreendê-las, refractando os fotogramas do que sinto em movimento.
Mas quando mapeio o todo afastando a cabeça, o pélvis e a barriga deslizam para a frente. Quando vou ao detalhe o pélvis desliza para trás. E esse durante deslizante do pélvis dá-me a sensação de aproximar-afastar inversa. Nesta ondulação as pernas e os braços estão livres para navegar as linhas do lado, como uma harmonia. Corpo -órgão com fronteiras de continuidade, contendo e sendo contingente.
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