Aquela situação não era a mais favorável do mundo, mas artur já tinha vivido uns anos para se deixar assustar aos primeiros sinais de descontrolo. O rio naquela altura do ano chegava bem acima quase rasando as margens que no verão o olhavam de cima. Mas apesar de ter a terra ali tão perto, a corrente era muito mais forte do que as gargalhadas fundas do tempo do calor. Artur estava habituado a manobrar o barco com destreza e este correspondia-lhe prontamente, confiando e entendendo a experiência das suas mãos, mas naquele dia tudo parecia estar a sair ao contrário. O barco teimava em não lhe obedecer, mas não de uma maneira selvagem ou rebelde, antes igualando na sua vontade o movimento das indicações de Artur. A direcção com que se lhe dirigia. Parecia que se lhe adaptava de forma contrária, quanto mais o esforço para o manter direccionado e conjugado com a corrente mais ele se debatendo e montando forças improváveis que o faziam adquirir caminhos fora da razoabilidade do entendimento. Numa suspeita contra todas as intuições ele suspende a sabedoria das mãos mas conserva a distância que as aproxima do barco. Quem visse de fora provavelmente não repararia na mudança, nem mesmo Artur se estivesse fora de si mesmo, como na maior parte do tempo acontecia. Mas naquela situação, na urgência que ali se revelava, todo ele era ouvidos para organizar a sobrevivência.
O barco serpenteava em formas desapropriadas, por vezes mesmo contra a corrente , e quanto mais as mãos ficavam e os olhos de Artur desistiam de agarrar uma lógica, mais uma espécie de mansidão desgovernada se ia adivinhando do casco, deslocando-se da aderência das águas por breves milímetros para logo as apanhar um pouco mais à frente e se voltar a debater.
Exausto, Artur deixa-se só cair na vontade, vontade de coisa nenhuma, só a vontade que na sua vontade de vontadez lhe ocupa os braços e todo o corpo, ansiosos por serem substituídos neste confronto com o desconhecido. O rio mais e mais zangado na sua tarefa eterna de chegar ao mar deixa de conversar com eles e o barco, pouco a pouco, começa a navegar rio acima com vontade e forma naturais, sem estranheza nem apertamento. As mãos retomam a sua sabedoria inicial, mas já não são as mesmas. Há uma aderência mais impregnada de si própria... aliás tudo, repara Artur, parece estar agora mais impregnado de si próprio... o céu antes azul achou-o agora impregnado de azulez, as margens barrentas cujas bordas se precipitam para o rio eram agora impregnadas de finitude.
O barco acalmou-se numa zona revolta, e uma água sobre outra água casaram as suas vontades num movimento perfeito. Não era nada sobre o barco.
Tuesday, November 29, 2011
Monday, November 21, 2011
cultura e economia
A cultura que a economia produz é a que traduz a utopia do anti-desperdício. De que se caminha para um ideal em que todas as acções têm um propósito e estão perfeitamente adequadas à sua obtenção, cada micro acção dentro da acção dirigindo-se a micro objectivos dentro do objectivo e assim por diante.
O não-saber e o para nada são demonizados como o que nunca deve acontecer, e quando detectados como algo a eliminar prontamente. Ser eficaz no cumprimento de um objectivo ganha sempre ao saber que emana da prática de fazer uma acção continuada no tempo. O mito da perfeição enquanto domínio de todos os ângulos de uma questão impõe uma visão que procura detectar e produtificar realidades, contornando-as pela identificação das suas características para de seguida controlar cada uma delas. Os próprios processos (de produção, de controlo, biológicos, relacionais...) são produtificados e vendidos, apresentados sem desconfortos, carregando e emanando a lógica do domínio de todos os ângulos da sua constituição, ou melhor ainda, de todos os ângulos que importam para esse domínio, eliminando ao mesmo tempo todos os outros - inúteis na obtenção desse domínio e portanto economicamente inexistentes.
A produtificação das nossas vidas e a orientação para a acção baseada no custo/benefício que a economia nos ensina é cultura. É uma maneira de pensarmos a vida, de decidirmos o que fazer a cada momento embuídos numa trama de linhas que prolongam as nossas micro decisões e nos devolvem o que fazemos num tecido que reconhecemos como cultura a partir do qual sustentamos essas decisões. Nesta cultura que nos convida a considerar o desnecessário como supérfulo, e o supérfulo como necessário noto uma migração do sentido das palavras: o que antes eu designava por desnecessário era o que eu reconhecia como não me servir para colmatar qualquer necessidade... uma falha momentânea entre causa e efeito, o não saber porquê e continuar. Hoje sinto que esse desnecessário é produtificado em supérfulo - que ao contrário do primeiro colmata a necessidade de ter o direito de não saber para que é que determinada coisa serve na minha vida... na lógica económica o supérfulo não é desperdício pois vem suprir necessidades...
Numa cultura que nos ensina que não há desnecessários, que se inscreve na utopia do completo aproveitamento das coisas e nos instiga a ir dentro das coisas encontrar as suas componentes aproveitáveis e eliminar o resto, se possível impedindo-o de se replicar, atingimos competências notáveis na reprodução das coisas que servem para alguma coisa (incluindo a reprodução de coisas que servem para impedir que se reproduzam coisas que não servem para nada). Falo mesmo das pessoas que carregam conhecimentos de tudo menos de como pode fazer alguma coisa a partir de nada...
Quando interiorizamos que os lugares são sítios onde se operam trocas de valor não nos custa denominar de livrarias os sítios onde se vendem livros, peixarias os sítios onde se vende peixe, escolas ao sítio onde se vende conhecimento, famílias onde se vende amor... não estou a fazer juízos de valor, estou a ver-me a mim própria agindo dentro de uma tecitura económica, dentro de uma cultura económica.
Mais uma vez as palavras mudaram de sentido dentro de si próprias. Dantes também dizia que uma livraria era um sítio onde se vendiam livros mas a visão que sustentava a palavra livraria era outra... a visão que hoje sustenta a palavra livraria (peixaria, escola, família, jardim, praça, café....) não inclui o nada, não inclui o não-saber que visão é esta... a visão humana que sustenta estas palavras hoje reflecte uma visão de sistema - na perseguição do sonho de fazer sistemas que pensem como nós acabamos por ser nós a pensar como os sistemas (qualquer encontro tem afectações para ambas as partes), elogiamos essa forma de pensar e ignoramos de nós próprios qualquer outra. Produtivizamo-nos e produtivizamos a vida encarando-a como um bem que nos é dado em quantidade limitada que gastamos dia a dia, da forma mais aproveitada possível, até se esgotar. Hoje na grande maioria dos sítios a que vou relaciono-me com esta visão sistémica e não a questiono.
A busca de não falhar, de encontrar um sistema que me impeça de falhar, que traduzo como produzir um máximo de coisas com um mínimo de recursos sem desperdícios não deixa existir o desconhecido e o incontrolável para além da sua utilidade enquanto desconhecimento e descontrole - produtos que me permitem obter o máximo de mim própria com os recursos disponíveis.
À medida que a minha vida me vai pertencendo mais a mim e menos a uma entidade exterior seja ele um deus ou um ditador, cessam-me as angústias pela reclamação da liberdade, mas o desafio da conquista dessa liberdade não desapareceu... como sou livre dentro da liberdade que tenho capacidade de me atribuir? Para mim essa conquista trava-se agora nas escolhas do que posso decidir. Quando aceito em liberdade que me ensinem que as escolhas que tenho disponíveis são as únicas, esse ensinamento produz a cultura que me ensina a corroborar esse ensinamento: posso demonstrar por A + B que as escolhas onde podem recair as minhas decisões são estas porque me foi ensinado que o que existe é o que pode ser provado por A+B.
Penso que agir em liberdade pressupõe questionar as escolhas para tomar decisões que são práticas de vida, movimentos contínuos capazes também de criar cultura... uma cultura de liberdade que me ensine outras coisas. Esta cultura tem de ser inventada, mas criar essa invenção terá de se feito a partir da cultura que existe hoje por isso é preciso continuar a perguntar, a não saber... pois necessariamente as primeiras respostas, antes de considerar profundamente que não sei as respostas do que estou a perguntar, serão respostas que reflectem os mesmos ensinamentos da cultura de onde provêm... mas só com o que sou hoje (e com o que sei hoje) posso duvidar do que sou hoje (do que sei hoje), e talvez me permita um dia em liberdade considerar outras escolhas e tecer outros ensinamentos...
Numa cultura que nos ensina que não há desnecessários, que se inscreve na utopia do completo aproveitamento das coisas e nos instiga a ir dentro das coisas encontrar as suas componentes aproveitáveis e eliminar o resto, se possível impedindo-o de se replicar, atingimos competências notáveis na reprodução das coisas que servem para alguma coisa (incluindo a reprodução de coisas que servem para impedir que se reproduzam coisas que não servem para nada). Falo mesmo das pessoas que carregam conhecimentos de tudo menos de como pode fazer alguma coisa a partir de nada...
Quando interiorizamos que os lugares são sítios onde se operam trocas de valor não nos custa denominar de livrarias os sítios onde se vendem livros, peixarias os sítios onde se vende peixe, escolas ao sítio onde se vende conhecimento, famílias onde se vende amor... não estou a fazer juízos de valor, estou a ver-me a mim própria agindo dentro de uma tecitura económica, dentro de uma cultura económica.
Mais uma vez as palavras mudaram de sentido dentro de si próprias. Dantes também dizia que uma livraria era um sítio onde se vendiam livros mas a visão que sustentava a palavra livraria era outra... a visão que hoje sustenta a palavra livraria (peixaria, escola, família, jardim, praça, café....) não inclui o nada, não inclui o não-saber que visão é esta... a visão humana que sustenta estas palavras hoje reflecte uma visão de sistema - na perseguição do sonho de fazer sistemas que pensem como nós acabamos por ser nós a pensar como os sistemas (qualquer encontro tem afectações para ambas as partes), elogiamos essa forma de pensar e ignoramos de nós próprios qualquer outra. Produtivizamo-nos e produtivizamos a vida encarando-a como um bem que nos é dado em quantidade limitada que gastamos dia a dia, da forma mais aproveitada possível, até se esgotar. Hoje na grande maioria dos sítios a que vou relaciono-me com esta visão sistémica e não a questiono.
A busca de não falhar, de encontrar um sistema que me impeça de falhar, que traduzo como produzir um máximo de coisas com um mínimo de recursos sem desperdícios não deixa existir o desconhecido e o incontrolável para além da sua utilidade enquanto desconhecimento e descontrole - produtos que me permitem obter o máximo de mim própria com os recursos disponíveis.
À medida que a minha vida me vai pertencendo mais a mim e menos a uma entidade exterior seja ele um deus ou um ditador, cessam-me as angústias pela reclamação da liberdade, mas o desafio da conquista dessa liberdade não desapareceu... como sou livre dentro da liberdade que tenho capacidade de me atribuir? Para mim essa conquista trava-se agora nas escolhas do que posso decidir. Quando aceito em liberdade que me ensinem que as escolhas que tenho disponíveis são as únicas, esse ensinamento produz a cultura que me ensina a corroborar esse ensinamento: posso demonstrar por A + B que as escolhas onde podem recair as minhas decisões são estas porque me foi ensinado que o que existe é o que pode ser provado por A+B.
Penso que agir em liberdade pressupõe questionar as escolhas para tomar decisões que são práticas de vida, movimentos contínuos capazes também de criar cultura... uma cultura de liberdade que me ensine outras coisas. Esta cultura tem de ser inventada, mas criar essa invenção terá de se feito a partir da cultura que existe hoje por isso é preciso continuar a perguntar, a não saber... pois necessariamente as primeiras respostas, antes de considerar profundamente que não sei as respostas do que estou a perguntar, serão respostas que reflectem os mesmos ensinamentos da cultura de onde provêm... mas só com o que sou hoje (e com o que sei hoje) posso duvidar do que sou hoje (do que sei hoje), e talvez me permita um dia em liberdade considerar outras escolhas e tecer outros ensinamentos...
Thursday, November 3, 2011
o texto que não existe (da performance 1 ou 2 contentamentos comedidos)
Este texto que estou a ler não existe. Não existe porque para que o possa ler precisava de já o ter acabado de ler. Para me relacionar com o que diz, preciso de já ter passado pela sua leitura, de passar pelo processo de o ler. De ter duvidado do que leio nele, e mesmo assim continuar a percorrer os olhos pelas suas linhas, de não entender o que diz sem suspender a continuação do jorrar da vida para voltar atrás e perceber melhor. Toda a aprendizagem de conteúdos realmente interpelantes contemplam práticas que não existem... práticas que para serem praticadas precisam de já o terem sido... não num passado, não por uma repetição ou exaustão, mas porque implicam uma via de acesso a elas que pressupõe a suspensão de uma narratividade lógica. Como se se tratasse de um cofre cuja combinação está dentro do próprio cofre e é preciso considerar encontrar -se a si próprio no lugar antes de haver combinação apanhando-se ao mesmo tempo na criação da combinação que dá acesso à entrada que me permite descobrir a própria combinação que necessito para a ter. Esse lugar evidentemente não existe, mas não quer dizer que não me atravesse, que não me possa tocar, assim como este texto que não existe também está a ser lido por mim, neste momento. E mesmo que volte atrás, pensando que conquistei algum saber que me permita voltar atrás e lê-lo do alto desse meu novo conhecimento, vou tristemente chegar à conclusão que não me ensina nada, que não acrescentei nada ao que sabia antes que me permita adentrar-me nele, conhecer o que quer dizer. Como o cofre fechado, a única forma de saber a combinação que o abre é estar ao mesmo tempo no tempo em que se manifesta a necessidade de o abrir e no tempo em que brota a chave da sua abertura. Dois tempos que são um, mas que não se inscrevem num espaço físico assim como este texto nãoocupa espaço na minha compreensão, não me ensina nada, não se amontoa com as coisas que sei. Este texto não existe nesta dimensão espaço tempo, mas pode ser lido aqui e agora... desconfio que eu também não existo completamente nesta dimensão do espaço tempo, mas posso estar aqui e agora, lendo este texto, que nada adianta para me salvar da estranheza de o estar a ler. Toda a aprendizagem de conteúdos realmente interpelantes contempla práticas que não existem. Se confiar neste texto talvez considere que estou a aprender alguma coisa com a experiência de o ler. Alguma coisa que não me vai servir para nada a não ser para me abrir a possibilidade de relação com a própria experiência de o ler. E então tenho aqui o acesso que me permite lê-lo de facto... um acesso que não me é ensinado, nenhuma mensagem a ser passada, nenhum código a ser decifrado a não ser aquele que sempre esteve aberto... mas no início da sua leitura estava num lugar ao lado deste que considero agora, num lugar muito parecido com este, que me permitia ter um textoa que me dirigir e ler, e que no entanto tem o acesso ao seu conteúdo cifrado, inacessível a quem se lhe dirige como se este texto existisse, como se não sobrasse, como se não fosse possível encontrar a dobra do tempo que me permite estar ao mesmo tempo dentro no coração da cifra e fora relacionando-me com o conteúdo decifrado... poderei voltar ao princípio do texto? mudei realmente de lugar no tempo linear que me levou a lê-lo? Se isso aconteceu não foi pelo que li nele... nada do que leio aqui me permite fazer essa deslocação, e no entanto há algum acrescento entre o início e o fim... um acrescento que se considero que existe é porque sei que este texto não existe. Se este texto existe, então nãome ensina nada. (Pois toda a aprendizagem de conteúdos realmente interpelantes contempla práticas que não existem)
www.1ou2contentamentoscomedidos.blogspot.com
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