Monday, November 21, 2011

cultura e economia

A cultura que a economia produz é a que traduz a utopia do anti-desperdício. De que se caminha para um ideal em que todas as acções têm um propósito e estão perfeitamente adequadas à sua obtenção, cada micro acção dentro da acção dirigindo-se a micro objectivos dentro do objectivo e assim por diante. 
O não-saber e o para nada são demonizados como o que nunca deve acontecer, e quando detectados como algo a eliminar prontamente. Ser eficaz no cumprimento de um objectivo ganha sempre ao saber que emana da prática de fazer uma acção continuada no tempo. O mito da perfeição enquanto domínio de todos os ângulos de uma questão impõe uma visão que procura detectar e produtificar realidades, contornando-as pela identificação das suas características para de seguida controlar cada uma delas. Os próprios processos (de produção, de controlo, biológicos, relacionais...) são produtificados e vendidos, apresentados sem desconfortos, carregando e emanando a lógica do domínio de todos os ângulos da sua constituição, ou melhor ainda, de todos os ângulos que importam para esse domínio, eliminando ao mesmo tempo todos os outros - inúteis na obtenção desse domínio e portanto economicamente inexistentes. 
A produtificação das nossas vidas e a orientação para a acção baseada no custo/benefício que a economia nos ensina é cultura. É uma maneira de pensarmos a vida, de decidirmos o que fazer a cada momento embuídos numa trama de linhas que prolongam as nossas micro decisões e nos devolvem o que fazemos num tecido que reconhecemos como cultura a partir do qual sustentamos essas decisões. Nesta cultura que nos convida a considerar o desnecessário como supérfulo, e o supérfulo como necessário noto uma migração do sentido das palavras: o que antes eu designava por desnecessário era o que eu reconhecia como não me servir para colmatar qualquer necessidade... uma falha momentânea entre causa e efeito, o não saber porquê e continuar. Hoje sinto que esse desnecessário é produtificado em supérfulo - que ao contrário do primeiro colmata a necessidade de ter o direito de não saber para que é que determinada coisa serve na minha vida... na lógica económica o supérfulo não é desperdício pois vem suprir necessidades...
Numa cultura que nos ensina que não há desnecessários, que se inscreve na utopia do completo aproveitamento das coisas e nos instiga a ir dentro das coisas encontrar as suas componentes aproveitáveis e eliminar o resto, se possível impedindo-o de se replicar, atingimos competências notáveis na reprodução das coisas que servem para alguma coisa (incluindo a reprodução de coisas que servem para impedir que se reproduzam coisas que não servem para nada). Falo mesmo das pessoas que carregam conhecimentos de tudo menos de como pode fazer alguma coisa a partir de nada...
Quando interiorizamos que os lugares são sítios onde se operam trocas de valor não nos custa denominar de livrarias os sítios onde se vendem livros, peixarias os sítios onde se vende peixe, escolas ao sítio onde se vende conhecimento, famílias onde se vende amor... não estou a fazer juízos de valor, estou a ver-me a mim própria agindo dentro de uma tecitura económica, dentro de uma cultura económica.
Mais uma vez as palavras mudaram de sentido dentro de si próprias. Dantes também dizia que uma livraria era um sítio onde se vendiam livros mas a visão que sustentava a palavra livraria era outra... a visão que hoje sustenta a palavra livraria (peixaria, escola, família, jardim, praça, café....) não inclui o nada, não inclui o não-saber que visão é esta... a visão humana que sustenta estas palavras hoje reflecte uma visão de sistema - na perseguição do sonho de fazer sistemas que pensem como nós acabamos por ser nós a pensar como os sistemas (qualquer encontro tem afectações para ambas as partes), elogiamos essa forma de pensar e ignoramos de nós próprios qualquer outra. Produtivizamo-nos e produtivizamos a vida encarando-a como um bem que nos é dado em quantidade limitada que gastamos dia a dia, da forma mais aproveitada possível, até se esgotar. Hoje na grande maioria dos sítios a que vou relaciono-me com esta visão sistémica e não a questiono.
A busca de não falhar, de encontrar um sistema que me impeça de falhar, que traduzo como produzir um máximo de coisas com um mínimo de recursos sem desperdícios não deixa existir o desconhecido e o incontrolável para além da sua utilidade enquanto desconhecimento e descontrole - produtos que me permitem obter o máximo de mim própria com os recursos disponíveis.
À medida que a minha vida me vai pertencendo mais a mim e menos a uma entidade exterior seja ele um deus ou um ditador, cessam-me as angústias pela reclamação da liberdade, mas o desafio da conquista dessa liberdade não desapareceu... como sou livre dentro da liberdade que tenho capacidade de me atribuir? Para mim essa conquista trava-se agora nas escolhas do que posso decidir. Quando aceito em liberdade que me ensinem que as escolhas que tenho disponíveis são as únicas, esse ensinamento produz a cultura que me ensina a corroborar esse ensinamento: posso demonstrar por A + B que as escolhas onde podem recair as minhas decisões são estas porque me foi ensinado que o que existe é o que pode ser provado por A+B.
Penso que agir em liberdade pressupõe questionar as escolhas para tomar decisões que são práticas de vida, movimentos contínuos capazes também de criar cultura... uma cultura de liberdade que me ensine outras coisas. Esta cultura tem de ser inventada, mas criar essa invenção terá de se feito a partir da cultura que existe hoje por isso é preciso continuar a perguntar, a não saber... pois necessariamente as primeiras respostas, antes de considerar profundamente que não sei as respostas do que estou a perguntar, serão respostas que reflectem os mesmos ensinamentos da cultura de onde provêm... mas só com o que sou hoje (e com o que sei hoje) posso duvidar do que sou hoje (do que sei hoje), e talvez me permita um dia em liberdade considerar outras escolhas e tecer outros ensinamentos...

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