Monday, August 6, 2012
17 posts num dia só
Os últimos 17 posts que publiquei são escritos que venho escrevendo desde fevereiro no blog do Pedras 2012 - www.pedras2012.wordpress.com um trabalho que desde há sete anos o c.e.m - centro em movimento faz com as pessoas e os lugares de lisboa. Foi ao longo destes meses que estes pequenos escritos foram sustentando o que sentia das práticas regulares de corpo que ajardinamos no c.e.m e que nos permitem caminhar no desconhecido. No meio de cada um destes escritos há dezenas de outros que ajudaram a fazer o seguinte... pô-los assim em lista seguidos uns dos outros é como um truque de cinema em que parece que o fotograma seguinte é mesmo o momento que se seguiu ao anterior, e assim podemos imaginar uma realidade... mas todos sabemos que entre uma coisa e outra há sempre o infinito.
Corpo sóbrio
Estes dias apareceu-me esta vontade de falar de uma certa forma de juntar o corpo que me apareceu com o nome de sobriedade… este corpo sóbrio é-o no sentido de que não sobra nem falta, tem o que é necessário a cada momento. O entendimento necessário a cada momento. Num processo similar ao que me faz entender quando preciso de alimentos em que quantidade e combinação, também sei o que compreender em que quantidade e combinação a cada momento. O corpo sóbrio no sentido de não estar embriagado pelo que no princípio do movimento é ajustado e depois deixa de ser. Embriagado não pelo atestar dos sinais que emite, mas porque não sabe parar, não sabe construir o contramovimento que diz “agora não mais disto” e iniciar outra coisa. Quando não sei dizer “não mais disto” é porque há uma vontade de me substituir à coisa que vi e que me disse que valia a penar ir por ali. Ir embora para sempre tem que incorporar o ficar já aqui, ou quero-me substituir ao movimento de ir embora, quero ser eu própria o movimento de ir embora, desimplicando-me de ser o que sou e ocupando uma substituição de mim própria que crio só para garantir que recebe os inputs essenciais à sobrevivência. Qual é o lugar em que comi demais, amei demais, soube demais, precisei demais, acumulei demais?… intimamente eu sei qual é esse lugar… sempre soube… posso fazer de conta que não sei, que não é para se falar disto, que há “demais” que não têm fim… que nunca se é bom demais, amigo demais, paciente demais, grato demais… mas não é de um limite fixo que estou a falar… este corpo que vou interrogando não tem limites fixos… é uma charneira ténue, um estremecimento… a quantidade certa de desconhecimento para cada conhecimento… não querer saber demais, não querer ser demais, não querer ocupar demais… os limites móveis são muito mais complexos de considerar.
Continuar
Continuar para mim é uma prática de vida…
Como tenho experienciado na frase do filósofo que trouxe Maria Filomena Molder: ”Primeiro capítulo, continuar, segundo capítulo, começar” Alain, Minerve ou de La Sagesse – é preciso continuar para poder começar… é preciso ter no intervalo das mãos a sabedoria de continuar perguntando para que delas se solte a formulação da pergunta.
O trabalho com pessoas e os lugares continua para que possa iniciar-se, impregnar-se de visibilidade e poder ter um nome e linhas que o explicam enquanto projecto.
Porque como qualquer projecto a pergunta é: se ainda não existe como pode ter aparecido? É evidente que os projectos só podem começar se antes continuaram. É evidente que as coisas só podem aparecer se antes se insistiu na pergunta da sua germinação. Não uma pergunta de porquê, ou para quê, mas a pergunta para nada que faz a semente brotar da terra…
Pensar não pode ser só o resultado da aplicação de um design industrializado de máxima eficácia. Se para ter comida em abundância se podem produzir frangos que crescem em 1/3 do tempo do seu desenvolvimento normal apenas com cartilagens fáceis de tratar enquanto matéria residual, para alicerçar uma reflexão de vida não se pode só fomentar pensamentos para obter algo, pensamentos que introduzimos no mecanismo de pensar de que fomos ensinados e que produzem decorrências de si próprios, com cartilagens dóceis de esmagar e re-introduzir no processo de pensamento que se fecha sobre si próprio.
Pensar para nada, estar para nada, mexer para nada, afinado o gesto no gesto, ouvindo o feed back que essa afinação me traz, permite pensar e continuar a pensar, perguntar e continuar a perguntar. Pode-se então pensar e perguntar na afinação da pulsação da vida que pergunta as coisas sem palavras, pergunta as palavras sem palavras, possibilitando encontrar as palavras justas que trazem ao visível o que já lá estava, como jardinando a semente se potencia que ela encontre as condições justas para trazer a árvore que já lá estava.
Continuar a perguntar o que é estar com pessoas e lugares é continuar a fazer o Pedras, depois de feito. É continuar a perguntar sem palavras potenciando que ele exista por entre as palavras que o permitem viabilizar enquanto projecto.
Continuemos a fazer o Pedras!
Intensidade
Que linhas detecto como intensas? Se calhar não tanto aquelas que me fazem sentir qualquer coisa, e mais as que me permitem ser qualquer coisa. Quando assisto a espectáculos penso frequentemente que o que estou a ver é para me fazer sentir qualquer coisa, que normalmente oscila ou numa escalada de “intensidade” na tentativa de se sobrepor ao adormecimento da reacção às sensações por força de estarem sempre a ser estimuladas, ou na ausência dessa “intensidade” percorrendo a mesma linha no sentido inverso, na tentativa de se subpor ao adormecimento da reacção às sensações e assim poderem introduzir outras reacções como o aborrecimento, a irritação ou a reflexão sobre a ausência de reacção.
Atravessando o Pedras vou percebendo intensidade por si só, sem ter de ser qualificada como alta ou baixa, conseguida ou não.
Estes dois dias foram extraordinariamente intensos, permitindo-me ser intensa junto com eles. Deformar a própria deformação que me deforma é uma dança intensa que não principia nem acaba.
Atravessar
Desde que reparei que a palavra decisão inclui a palavra cisão, há qualquer coisa de instável que me tem animado os pensamentos…
Isto já tem algum tempo mas lembro-me bem que me nesse momento me chegou uma imagem de decisão no sentido de atravessamento do espaço. Um espaço que ao meu olhar emerge de duas margens, de duas linhas de precipício. Tomar a decisão de atravessar o precipício não é desenvolver técnicas ou apostar na criatividade que me pudesse fazer chegar “ao outro lado”, era atravessar o espaço do meio, criando o meio de fazer isso na vontade fizicalizada de atravessar.
Há alguns meses começámos a considerar a visibilidade do Pedras nestes três dias de festival (o primeiro acaba de terminar) na mesma vontade que nos motivou todos estes meses de acções diárias: Atravessar como decisão a duração do enquanto, a decisão que não acaba, que revela a sustentação do lugar do meio uma sustentabilidade invisível que aparentemente não sustenta o peso do corpo que o atravessa, mas o que fomo descobrindo é que na própria consideração de atravessar o corpo é atravessado por outras considerações que interagem com as evidências das restrições do entorno.
Atravessar a visibilidade da invisibilidade, atravessar o encontro, atravessar o que foi planeado mas só acontece na impregnação do enquanto está a acontecer! Atravessar e continuar atravessando. Atravessar dentro de atravessar.
Tudo ao mesmo tempo
não é sobre conseguir ver tudo ao mesmo tempo… também não é sobre enaltecer a capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo… é atentar no acorde sem esquecer a nota… e considerar a especificidade da vibração conjunta… não é entendê-la na medida da perfeição da junção das partes, nem cair na “esquizofrenia” de fazer valer todas as dissonâncias… o lugar do meio ainda é difícl de explicar… essa coisa de não parar nem o que acontece nem o acontecimento que sou eu… esse lugar acenta num certo à-vontade com o tudo ao mesmo tempo… com atravessar as urgências que dizem: então alinho desta maneira, então vou pensar da seguinte forma, então vou organizar segundo este denominador comum… é ouvir isto e continuar, seguir atravessando… ver as inúmeras possíbilidades e continuar escolhendo o brotar da vida, toda ao mesmo tempo… sem a deixar morrer à míngua nem a alagar de vontade que viva… ver pelo lugar do meio é reclamar um lugar móvel de onde vejo o que vejo… não é ver enquanto me movimento ou enquanto sou movimentado como contraponto à expectativa de que enquanto expectador é o que me é dado a ver que tem que se mover. ver no lugar do meio é ver em movimento num lugar em que nunca houve ausência dele… não é pôr-me a ver e depois pensar como seria essa mesma visão mas em movimento… requer esse à-vontade com o tudo ao mesmo tempo, que me permite estar próximo. uma proximidade que não permite fazer nada… pois nesse atravessar que me permite a proximidade com as coisas vou-me despojando da visão antropocênctrica de querer fazer coisas às coisas… apenas fico próxima… silenciosamente próxima testemunhando a transformação do momento, todo ao mesmo tempo.
Um dia sem regras
É preciso densidade para não ter regras… é preciso acompanhar-se na trepidação do acontecer para poder não haver regras… para deixar até que possa não haver a regra de não haver regras… entrar realmente na proposta implica sempre prolongar-se até às bordas de onde ela parece dizer o seu oposto… entrar e continuar a perguntar implica atravessar sem ver… quer dizer, ver desfocado, ver sem apanhar a imagem, deixar que ela se adentre nos olhos sem me adiantar a dizer logo o que é… é preciso massa física para perceber certas coisas, para continuar onde as palavras se detêm (ainda…) à míngua de tridimensionalidade.
não ter regras não é um conceito, é uma consideração da existência, uma pergunta que nasce do lugar em que existir não é um conceito… as pedras têm este lugar, o vento tem este lugar… é preciso muita densidade para ter a liberdade das pedras
Impreciso
Ser impreciso. Ser precisamente impreciso. Saber-se precisamente que o que se quer é ser-se impreciso. Treinar a precisão da imprecisão é uma ginástica que gosto de fazer… acompanhar-me onde precisamente não sei… esta qualidade de imprecisão não é uma desculpa para a incapacidade de ser preciso… não é dar um outro enquadramento ao que está a acontecer, como por uma etiqueta no monte da roupa suja a dizer “untitled – artista desconhecido”… ginasticar a imprecisão também não é encontrar uma maneira de ser impreciso nas coisas… desenvolver uma espécie de logaritmo que despenteia a precisão, dizer um pouco de farinha em vez de duas colheres, de forma a substituir toda a designação de quantidade pela expressão “um pouco”, ou fazer um traço que depois se esborrata com o dedo… ser impreciso no nascer do gesto requer uma prática, um considerar de uma pulsação que acode à vista, que se deixa ver quando considerada… não é uma outra maneira de fazer as coisas, não é um formato contemporâneo que vem corresponder aos códigos vigentes… é uma pergunta que decorre do silêncio, do não-perguntar… não de abster-se de perguntar mas de seguir perguntando mesmo depois de desconfiar das respostas… perguntando na formulação do silêncio, na língua das distâncias.
Os polícias do corpo
Há uma linha que diz até aonde o corpo pode ir, não é o que se consegue fazer, pois esse conseguir é reclamado pelo próprio fazedor, nem o que o corpo pode pois esse fazer é ajardinado e não é controlável… a linha que diz até aonde o corpo pode ir paira-lhe à volta como um contorno, está legislada nos olhos de quem o olha – está inscrustada nos olhos de quem olha o corpo, um risco na irís que estabelece a diferença entre o que está a acontecer e o que deve acontecer. Estes olhos policiam o corpo, o próprio corpo de que são olhos e dizem até aonde o corpo-objecto pode actuar… na segunda feira alguém disse de alguém que uma senhora viúva não se devia sentar ao colo de um homem… senhora, viúva e homem são corpos contornados nessa linha embutida nos olhos: cada um pode ir precisamente até ali e esse ali toda a gente sabe onde é (será isso a cultura?)… não acredito no trabalho que tenta estilhaçar este contorno, também não me identifico com o fazer de conta que ele não existe e trabalhar noutro lugar… como eu faço é tentando atravessar a linha… quando atravesso linhas deslumbo-me sempre com a constatação da sua espessura, ponho-me noutra relação com a linha… ver a espessura exige de facto uma constatação de corpo que atravessa, neste caso, a ausência dele… talvez este fazer, este trabalho impeça de se instalar a cultura… talvez por isso seja tão desconsiderado enquanto trabalho e tão amado enquanto acção… como algo que é preciso fazer mas que não se deve falar nisso – lá estão as linhas desenhadas nos olhos – como fazer cocó, tratar de alguém doente, abraçar outro corpo na urgência de o fazer… antes é melhor falar de defecação, de fazer tratamentos, ou estabelecer afectos… o corpo devidamente policiado naquilo que deve fazer, devidamente delineado na sua forma de se dar a ver… precisando de se sustentar para poder viver no que não se deve dizer, mas rejeitando-o quando o encontra fora dos contornos incrustados nos olhos.
Proximidade
Escrito no Projecto Pedras 2012 - pessoas e lugares (22/mai/2012)
A regularidade de estar na rua tem-me alertado para a qualidade de estar próxima… surpreendentemente acompanho-me próxima das coisas mais insuspeitas, não raro textos… levo livros para a rota, abro-os e o que leio inunda-me de uma emoção que não sei nomear… sinto que tenho profundamente a ver com aquilo que estou a ler, naquele momento, uma espécie de água interna que me vai transbordando por dentro, apagando os limites que retenho do corpo. Identifico isto com proximidade… uma espécie de propensão para estar próxima sem saber do quê. Atravessa-me a proximidade com situações que vejo, com pessoas de quem me sento ao lado casualmente e com o mesmo espanto sinto esse derreter a partir de dentro, que não vai a lado nenhum, não quer dizer mais do que a pertinência da chuva quando molha as ervas.
Esta proximidade também tem uma consideração própria das distâncias… muitas vezes me sinto próxima de coisas que acontecem longe de mim, e longe das coisas de que estou próxima. Neste estado de proximidade cria-se uma geografia própria que o meu corpo modela como se fosse barro. Rugosidades próprias da relação próxima… o mergulho para dentro da ruga que é tão importante como o desembrulhar abrupto do planalto.
Sobre escolhas e matérias
Escrito do Projecto Pedras 2012 - pessoas e lugares - 13/05/2012
Quando partilho uma matéria pressuponho uma afinidade do outro para com aquilo que falo, que ele de algum modo também pergunta ou quer vir a perguntar. Inquietações parecidas que permitem que de alguma forma o “conhecimento” aconteça no desenho de acontecer. Uma outra camada disto é se quem vem ao encontro da matéria que partilho faz a escolha de vir especificamente a essa matéria. Sabendo que ela se dá no encontro. Por outras palavras, talvez seja que sabendo que a matéria é o encontro escolhe encontrar-se com ela. Assim a matéria, sendo da mesma natureza é ligeiramente outra, pois quando o outro, conscientemente a escolhe – não para a aplicar à sua pesquisa nem para a validar num outro campo ou em si mesma – mas conscientemente adentrando-se no encontro que acontece, na especificidade do acesso a este encontro, reconhecendo as características da densidade da matéria e não da identificação dos seus contornos, então a mistura das águas ganha mais confiança do que o foco na parte visível da matéria. Para além do desembrulhar das ondas da praia… há a água que volta com força para dentro do mar enquanto a outra se alisa na direcção contrária sobre a areia. A água de cima roçando na água de baixo, mas onde a água sabe que é de cima ou de baixo? Há a escolha, pode-se considerar a água do meio. Não se trata de uma posição que defino para mim… não é porque não foi feita a escolha que não tenho a legitimidade para falar de uma outra camada da mesma matéria… é que esse acesso não se abre de facto. Se ensino no lugar onde posso então é evidente a distância entre o que é possível e o que consigo fazer. Ou seja, não é que não o consiga fazer, é que não posso. E o impedimento não é por uma questão de decisão, é do lugar do corpo – o corpo que consegue mas nem sempre pode – o mesmo onde assenta a matéria do encontro.
Quando partilho uma matéria pressuponho uma afinidade do outro para com aquilo que falo, que ele de algum modo também pergunta ou quer vir a perguntar. Inquietações parecidas que permitem que de alguma forma o “conhecimento” aconteça no desenho de acontecer. Uma outra camada disto é se quem vem ao encontro da matéria que partilho faz a escolha de vir especificamente a essa matéria. Sabendo que ela se dá no encontro. Por outras palavras, talvez seja que sabendo que a matéria é o encontro escolhe encontrar-se com ela. Assim a matéria, sendo da mesma natureza é ligeiramente outra, pois quando o outro, conscientemente a escolhe – não para a aplicar à sua pesquisa nem para a validar num outro campo ou em si mesma – mas conscientemente adentrando-se no encontro que acontece, na especificidade do acesso a este encontro, reconhecendo as características da densidade da matéria e não da identificação dos seus contornos, então a mistura das águas ganha mais confiança do que o foco na parte visível da matéria. Para além do desembrulhar das ondas da praia… há a água que volta com força para dentro do mar enquanto a outra se alisa na direcção contrária sobre a areia. A água de cima roçando na água de baixo, mas onde a água sabe que é de cima ou de baixo? Há a escolha, pode-se considerar a água do meio. Não se trata de uma posição que defino para mim… não é porque não foi feita a escolha que não tenho a legitimidade para falar de uma outra camada da mesma matéria… é que esse acesso não se abre de facto. Se ensino no lugar onde posso então é evidente a distância entre o que é possível e o que consigo fazer. Ou seja, não é que não o consiga fazer, é que não posso. E o impedimento não é por uma questão de decisão, é do lugar do corpo – o corpo que consegue mas nem sempre pode – o mesmo onde assenta a matéria do encontro.
Como distinguir as coisas que sim das coisas que não
Escrito no Projecto Pedras 2012 - pessoas e lugares - 03/05/2012
Esta pergunta assoma regularmente ao que faço, ao que considero e escolho com base nesta consideração. O desafio desta pergunta entendo-o no lugar que ela se faz entender em mim, na parte especializada em perceber porque é que sim e porque é que não. O lugar que sabe mesmo, que sabe que não sabe em primeiro lugar – e não o lugar onde sempre soube tudo e já sei qual a decisão acertada. Este lugar eu já conheço bem – usei-o para fazer testes na escola, para responder às pessoas com base no conhecimentos que represento ou quando preciso de resolver um assunto. Ao contrário,o lugar que sabe que não sabe é descarado, bruto, vê o que vê e não o que julga que está a ver… por isso ri-se e aponta com a falta de cuidado de quem não tem susceptibilidades a ferir ou evitar aleijar…
Como é que se sabe quais são as coisas que sim e as coisas que não? Acho que pela mesma maneira que se sabe quando se quer estar num lugar e noutro não, ao pé de uma pessoa e não ao pé de outra, trabalhando uma matéria e não outra. A garantia que se sabe, é que não se sabe porquê… os olhos que vêem o que estão a ver não são fisicamente os mesmos que sabem justificar o que vêem… o cérebro que pensa o que está a pensar não é fisicamente o mesmo que sabe justificar o que pensa. – Não estou a falar de intuição… estou a falar de um lugar que tem uma testemunha que estando lá nunca vai dizer o que vê, não pela ausência de possibilidade de o fazer, mas porque essa é a sua qualidade de testemunha.
Quando sei porque é que faço as coisas, sei que perco o descaramento de as fazer realmente. Perco a confiança de apontar o que precisa ser feito. Quando sei porque faço o que faço, sei (nesse outro lugar que sabe que não sabe) que não faço. Por isso confio na efectividade da acção. Quando me encontro na turbulência da acção evidenciam-se as coisas que sim e as outras que não. Então posso fazer a escolha das coisas que sim, e não podendo justificar o que faço, (os braços que fazem não são fisicamente os mesmos braços que sabem o que fazem) posso pertinentemente fazê-lo.
O lugar que distingue as coisas que sim das coisas que não, é o lugar onde posso.
Esta pergunta assoma regularmente ao que faço, ao que considero e escolho com base nesta consideração. O desafio desta pergunta entendo-o no lugar que ela se faz entender em mim, na parte especializada em perceber porque é que sim e porque é que não. O lugar que sabe mesmo, que sabe que não sabe em primeiro lugar – e não o lugar onde sempre soube tudo e já sei qual a decisão acertada. Este lugar eu já conheço bem – usei-o para fazer testes na escola, para responder às pessoas com base no conhecimentos que represento ou quando preciso de resolver um assunto. Ao contrário,o lugar que sabe que não sabe é descarado, bruto, vê o que vê e não o que julga que está a ver… por isso ri-se e aponta com a falta de cuidado de quem não tem susceptibilidades a ferir ou evitar aleijar…
Como é que se sabe quais são as coisas que sim e as coisas que não? Acho que pela mesma maneira que se sabe quando se quer estar num lugar e noutro não, ao pé de uma pessoa e não ao pé de outra, trabalhando uma matéria e não outra. A garantia que se sabe, é que não se sabe porquê… os olhos que vêem o que estão a ver não são fisicamente os mesmos que sabem justificar o que vêem… o cérebro que pensa o que está a pensar não é fisicamente o mesmo que sabe justificar o que pensa. – Não estou a falar de intuição… estou a falar de um lugar que tem uma testemunha que estando lá nunca vai dizer o que vê, não pela ausência de possibilidade de o fazer, mas porque essa é a sua qualidade de testemunha.
Quando sei porque é que faço as coisas, sei que perco o descaramento de as fazer realmente. Perco a confiança de apontar o que precisa ser feito. Quando sei porque faço o que faço, sei (nesse outro lugar que sabe que não sabe) que não faço. Por isso confio na efectividade da acção. Quando me encontro na turbulência da acção evidenciam-se as coisas que sim e as outras que não. Então posso fazer a escolha das coisas que sim, e não podendo justificar o que faço, (os braços que fazem não são fisicamente os mesmos braços que sabem o que fazem) posso pertinentemente fazê-lo.
O lugar que distingue as coisas que sim das coisas que não, é o lugar onde posso.
Obrigada...
Escrito no projecto Pedras 2012 - Pessoas e Lugares - 21/abr/2012
Tenho notado que me encontro com alguma frequência na situação de estar agradecida… por nada muitas vezes que possa dizer realmente “obrigada por esta situação, ou por me estar a acontecer isto ou aquilo”, é mais um agradecimento pelo sabor do momento… porque pude desfrutar do momento no momento, e então agradeço no momento pelo momento que percebo momento… nem por ser bom nem por ter alguma qualidade notável… há alguns anos que me percebo que venho fazendo isto… reconheci como um sinal de estar conectada com o mundo, de priorizar outras coisas para além da alegria e da dor, da necessidade ou da satisfação… mas então aconteceu algo brutal que mudou a minha vida para sempre, e eu pensei: com certeza não foi por falta de agradecer o que tinha, de desconsiderar o que me tem possibilitado existir… embora muitas vezes não esteja a pensar no que isso é de facto, claro… mas pensei que o que me estava a acontecer não seria por um desconsiderar o que não conheço… dou por mim a não conseguir evitar de tentar perceber porque é que um acto que sinto genuíno não foi recompensado… ao mesmo tempo que tenho a certeza que não há nada para perceber… e quanto mais a convicção de que não há nada para perceber me assola, mais vou vislumbrando que talvez não seja tanto sobre agradecer, mas mais sobre a capacidade de estar agradecida… nesse sentido ela foi reforçada… cada vez mais me apanho agradecida… encontrar-me agradecida pelo momento reconhecido é apanhar-me confiando que não é sobre agradecer alguma coisa para que possa merecer essa coisa… as coisas são muito maiores do que eu para poderem ficar comigo ainda que eu as mereça… estar agradecida é uma coisa incrível que me acontece, vida acontecendo em mim… talvez a própria experiência de que sou maior do que eu para poder ficar comigo, ainda que vá desconfiando de quem sou… o corpo que não é só biológico tecendo-se… criando a possibilidade de existir com a fisicalidade necessária a este universo… acho que é isso que experimento quando me sinto agradecida…
Tenho notado que me encontro com alguma frequência na situação de estar agradecida… por nada muitas vezes que possa dizer realmente “obrigada por esta situação, ou por me estar a acontecer isto ou aquilo”, é mais um agradecimento pelo sabor do momento… porque pude desfrutar do momento no momento, e então agradeço no momento pelo momento que percebo momento… nem por ser bom nem por ter alguma qualidade notável… há alguns anos que me percebo que venho fazendo isto… reconheci como um sinal de estar conectada com o mundo, de priorizar outras coisas para além da alegria e da dor, da necessidade ou da satisfação… mas então aconteceu algo brutal que mudou a minha vida para sempre, e eu pensei: com certeza não foi por falta de agradecer o que tinha, de desconsiderar o que me tem possibilitado existir… embora muitas vezes não esteja a pensar no que isso é de facto, claro… mas pensei que o que me estava a acontecer não seria por um desconsiderar o que não conheço… dou por mim a não conseguir evitar de tentar perceber porque é que um acto que sinto genuíno não foi recompensado… ao mesmo tempo que tenho a certeza que não há nada para perceber… e quanto mais a convicção de que não há nada para perceber me assola, mais vou vislumbrando que talvez não seja tanto sobre agradecer, mas mais sobre a capacidade de estar agradecida… nesse sentido ela foi reforçada… cada vez mais me apanho agradecida… encontrar-me agradecida pelo momento reconhecido é apanhar-me confiando que não é sobre agradecer alguma coisa para que possa merecer essa coisa… as coisas são muito maiores do que eu para poderem ficar comigo ainda que eu as mereça… estar agradecida é uma coisa incrível que me acontece, vida acontecendo em mim… talvez a própria experiência de que sou maior do que eu para poder ficar comigo, ainda que vá desconfiando de quem sou… o corpo que não é só biológico tecendo-se… criando a possibilidade de existir com a fisicalidade necessária a este universo… acho que é isso que experimento quando me sinto agradecida…
Violência
Escrito no projecto Pedras 2012 - pessoas e lugares - 29/mar/2012
Violência… não é um assunto que me atravessa frequentemente, acho que não me encontro com ela. Não está no meu adn, não a chamo nem sou chamada por ela… mas de vez em quando visita-me o princípio da violência… acho que entendo violência como a consciência da não escuta… a ação de negar por vontade a compreensão na afinação das coisas. Violência é o dique não é a não escuta por si só… é não escutar e saber que não se escuta… é falar com a consciência que o que se está a dizer não é de todo o que se está a dizer… não é não saber o que se está a dizer ou saber o que se está a dizer… violência é o saber que quer saber mais que a sabedoria… é querer pôr ao serviço o que se sabe pelo domínio das forças que me permitiram sabê-lo.
Violência é escravizar a sabedoria manejando o que sei. Posso falar do que for pela violência… posso até falar de paz e usar palavras pacíficas e pacificadoras… posso fazer tudo a partir do lugar da violência menos deixar de ser violento.
O lugar da violência não é o do apartamento das coisas, da falta de ligação. É querer domesticar as ligações que vejo quando me ligo. Violento é querer ser maior do que eu no sentido absoluto, é quando deixo de ver a linha invisível sobre a qual caminha quem sabe que a pulsação está entre ser e querer ser.
Violento é aquele que vê o lento, mas lhe amputa a velocidade da lentidão… a sua indomabilidade que a sustém, lenta.
Deixar-me deformar pela violência é ser atravessada pela força controladora… é encontrar-me a pulsar na constante configuração e reconfiguração… exige-me a continuidade por hiatos, o intervalo dentro da continuidade do intervalo. Tem a elasticidade que tem, assim como a pele só recupera a mesma ferida um certo n.º de vezes, também ela trabalhando o intervalo dentro do próprio intervalo.
Ler pelo meio de ler
Escrito do projecto pedras 2012 - pessoas e lugares - 20/mar/2012
estado de leitura… ler, foi-me ensinado, é uma ação solitária, o leitor e o seu livro, o mundo em volta que desaparece… fala-se muito de viajar dentro de um livro… entendo e reconheço esse estado, é talvez dos mais viciantes que encontro, a cabeça sustentando-se nas linhas, criando mundos levantados a partir de sonhos só por aquelas letras, aquelas frases, uma a seguir às outras… mas também há outro estado de leitura, ou talvez o mesmo se continuar lá, continuando a perguntar que estado é este ao mesmo tempo que leio… aqui o corpo todo disponibiliza-se para ler, não se fecha só no triângulo mãos, cabeça, livro… abre-se na nuca, pescoço, omoplatas, dá a volta sobre si mesmo, e as mãos que seguram o livro já não são as mesmas que seguram os livros… estas outras mãos que seguram o livro permitem-me fisicalizar a leitura… atravessá-la como se percorresse um caminho ou mesmo desbravasse um… estas outras mãos permitem-me mesmo percorrer um caminho enquanto leio, mas também ler um caminho enquanto o percorro, ou caminhar uma leitura enquanto…
encanta-me a capacidade do corpo de ser enquanto, de me fazer relacionar pelo que discorre sem direção nem propósito… indo a lado nenhum senão atrás das pernas… o corpo ensina-me que ando atrás das pernas enquanto acho que vou a algum sítio… o corpo ensina-me que ando atrás das palavras enquanto as quero fazer submeter à lógica do que me está a ser contado… leio enquanto leio, nem à frente nem atrás de ler e aparecem-me palavras-corpo, que ora me atravessam, ora chocam comigo, ora me emprestam o seu lastro para me prolongar nelas… uma pulsação própria… e então às vezes tenho um vislumbre do seu autor, procurando contê-las numa forma, maestrando-as num texto, porque sabe que são indomáveis… querem sempre dizer outras coisas… revelam-se-me relações precárias entre elas… se as volto a ler já não está lá aquele vislumbre de alinhamento que entrevi, e que me parece ser o mesmo que quem as escreveu também viu… está e não está… leio as fachadas dos prédios e as portas, leio com os pés no seu encontro com o chão… leio palavras mas também a tensão entre elas, como as distâncias variáveis dos degraus que subo enquanto isso proporciona tensões específicas nos meus olhos… de ler nunca se termina…
estado de leitura… ler, foi-me ensinado, é uma ação solitária, o leitor e o seu livro, o mundo em volta que desaparece… fala-se muito de viajar dentro de um livro… entendo e reconheço esse estado, é talvez dos mais viciantes que encontro, a cabeça sustentando-se nas linhas, criando mundos levantados a partir de sonhos só por aquelas letras, aquelas frases, uma a seguir às outras… mas também há outro estado de leitura, ou talvez o mesmo se continuar lá, continuando a perguntar que estado é este ao mesmo tempo que leio… aqui o corpo todo disponibiliza-se para ler, não se fecha só no triângulo mãos, cabeça, livro… abre-se na nuca, pescoço, omoplatas, dá a volta sobre si mesmo, e as mãos que seguram o livro já não são as mesmas que seguram os livros… estas outras mãos que seguram o livro permitem-me fisicalizar a leitura… atravessá-la como se percorresse um caminho ou mesmo desbravasse um… estas outras mãos permitem-me mesmo percorrer um caminho enquanto leio, mas também ler um caminho enquanto o percorro, ou caminhar uma leitura enquanto…
encanta-me a capacidade do corpo de ser enquanto, de me fazer relacionar pelo que discorre sem direção nem propósito… indo a lado nenhum senão atrás das pernas… o corpo ensina-me que ando atrás das pernas enquanto acho que vou a algum sítio… o corpo ensina-me que ando atrás das palavras enquanto as quero fazer submeter à lógica do que me está a ser contado… leio enquanto leio, nem à frente nem atrás de ler e aparecem-me palavras-corpo, que ora me atravessam, ora chocam comigo, ora me emprestam o seu lastro para me prolongar nelas… uma pulsação própria… e então às vezes tenho um vislumbre do seu autor, procurando contê-las numa forma, maestrando-as num texto, porque sabe que são indomáveis… querem sempre dizer outras coisas… revelam-se-me relações precárias entre elas… se as volto a ler já não está lá aquele vislumbre de alinhamento que entrevi, e que me parece ser o mesmo que quem as escreveu também viu… está e não está… leio as fachadas dos prédios e as portas, leio com os pés no seu encontro com o chão… leio palavras mas também a tensão entre elas, como as distâncias variáveis dos degraus que subo enquanto isso proporciona tensões específicas nos meus olhos… de ler nunca se termina…
Em casa
Escrito do projecto Pedras 2012 - pessoas e lugares - 06/mar/2012
Tenho tantas coisas escritas e não me parece pertinente que apareçam aqui… antes mais pertinente é dizer que as tenho escritas… que passei dois dias escrevendo, atravessando a muscularidade da mão na sua tensão sobre o papel, sendo corrida dos cafés que fechavam um às sete, o outro às oito, o outro às nove… dilatando um escrever mais arejado, capaz de acolher beijinhos e conversas e outro mais denso que chegava quando chegava (sempre na altura em que podia, ou então porque quando chegava todo o espaço lhe acolhia a vontade)… é inevitável pensar na rota… no saber que ela me imprime no corpo, uma densidade que não tem oposto, que também é dispersão, também é densidade, também é ir atrás dos outros, ou ir à frente, ao lado, ficar um pouco mais para trás, ou esperar mais à frente… a rota tem uma duração, mas não tem uma história… podem ser vários dias no mesmo dia, mas o que eu sinto realmente é que o tempo não passa… não são cinco horas, porque se fossem cinco horas a caminhar o meu corpo estaria como está quando faz caminhadas de cinco horas… o tempo da rota não existe, não se gasta, não se trata de uma história, não passa de A para B, ele não é a linha sustentadora dos acontecimentos, antes escorre como a água num regato, em que não nos apressamos a perguntar onde está a torneira que possa estancar o jorro… por isso o tempo não passa pelo meu corpo… passa espaço… quando percorro a rota sinto que é o espaço que me atravessa a mim, é o espaço que me percorre e reconfigura lugares de mim mesma que antes carregava comigo sempre da mesma forma. Coisas simples: a forma como o que levo às costas e ao ombro se ajusta à roupa e a como me movo sem carregar coisas, mas antes sendo-as… elas só podem ser porque o espaço me percorre e ampara, com a sua pertinência espacial, a distribuição do meu peso e volume, calibrando as oscilações, acompanhando-me no percorrer de cada passo. cada passo não dura tempo, sustenta-se no espaço. Coisas simples como as distâncias com que me permito fazer coisas na rua, abrir um banco, sentar-me, abrir a mochila, comer um iogurte, guardar o frasco do iogurte, e acolher suja de iogurte, ao mesmo tempo ter o caderno aberto em cima de uma das pernas com a caneta presa lá dentro, e perceber na muscularidade da mão que ela consegue escrever ali, guardando a maciez da escrita, a mesma maciez que só imaginava capaz de surgir num quarto almofadado de pelúcia em cima de uma secretária de mogno, mas quando o espaço te percorre, as distâncias de ti própria que ele acaricia são as mesmas quer estejas na rua ou no quarto, e isso dá-te a maciez familiar de estar em casa… não é o quarto, não é o que se pensa como deveria ser o quarto, é o espaço passando por ti que ajardina as distâncias justas que sustentam a ação, e dás por ti e elas a acontecerem e tu sem argumentos de tempo para dizer: agora não posso que tenho de ir fazer outra coisa… porque essa outra coisa que tens para fazer só vem quando o tempo voltar a ter horas onde pendurares as coisas… mas entretanto… entretanto… estiveste em casa!
Tenho tantas coisas escritas e não me parece pertinente que apareçam aqui… antes mais pertinente é dizer que as tenho escritas… que passei dois dias escrevendo, atravessando a muscularidade da mão na sua tensão sobre o papel, sendo corrida dos cafés que fechavam um às sete, o outro às oito, o outro às nove… dilatando um escrever mais arejado, capaz de acolher beijinhos e conversas e outro mais denso que chegava quando chegava (sempre na altura em que podia, ou então porque quando chegava todo o espaço lhe acolhia a vontade)… é inevitável pensar na rota… no saber que ela me imprime no corpo, uma densidade que não tem oposto, que também é dispersão, também é densidade, também é ir atrás dos outros, ou ir à frente, ao lado, ficar um pouco mais para trás, ou esperar mais à frente… a rota tem uma duração, mas não tem uma história… podem ser vários dias no mesmo dia, mas o que eu sinto realmente é que o tempo não passa… não são cinco horas, porque se fossem cinco horas a caminhar o meu corpo estaria como está quando faz caminhadas de cinco horas… o tempo da rota não existe, não se gasta, não se trata de uma história, não passa de A para B, ele não é a linha sustentadora dos acontecimentos, antes escorre como a água num regato, em que não nos apressamos a perguntar onde está a torneira que possa estancar o jorro… por isso o tempo não passa pelo meu corpo… passa espaço… quando percorro a rota sinto que é o espaço que me atravessa a mim, é o espaço que me percorre e reconfigura lugares de mim mesma que antes carregava comigo sempre da mesma forma. Coisas simples: a forma como o que levo às costas e ao ombro se ajusta à roupa e a como me movo sem carregar coisas, mas antes sendo-as… elas só podem ser porque o espaço me percorre e ampara, com a sua pertinência espacial, a distribuição do meu peso e volume, calibrando as oscilações, acompanhando-me no percorrer de cada passo. cada passo não dura tempo, sustenta-se no espaço. Coisas simples como as distâncias com que me permito fazer coisas na rua, abrir um banco, sentar-me, abrir a mochila, comer um iogurte, guardar o frasco do iogurte, e acolher suja de iogurte, ao mesmo tempo ter o caderno aberto em cima de uma das pernas com a caneta presa lá dentro, e perceber na muscularidade da mão que ela consegue escrever ali, guardando a maciez da escrita, a mesma maciez que só imaginava capaz de surgir num quarto almofadado de pelúcia em cima de uma secretária de mogno, mas quando o espaço te percorre, as distâncias de ti própria que ele acaricia são as mesmas quer estejas na rua ou no quarto, e isso dá-te a maciez familiar de estar em casa… não é o quarto, não é o que se pensa como deveria ser o quarto, é o espaço passando por ti que ajardina as distâncias justas que sustentam a ação, e dás por ti e elas a acontecerem e tu sem argumentos de tempo para dizer: agora não posso que tenho de ir fazer outra coisa… porque essa outra coisa que tens para fazer só vem quando o tempo voltar a ter horas onde pendurares as coisas… mas entretanto… entretanto… estiveste em casa!
Espero a rota ou começo a rota
Escrito do projecto pedras 2012 - pessoas e lugares - 27/fev/2012
Apanho a rota a meio caminho, uma novidade… no fundo quando saio todos os dias na praça do comércio, aquela imensidão de chão branco lembra-me sempre uma praia e quando desço do 15 e o corpo fica assim de frente para o rio, por momentos cola-se a recordação dos verões de dias intermináveis de praia, a areia debaixo dos chinelos e a toalha à volta dos ombros porque de manhã mesmo de manhãzinha ainda fazia frio apesar do sol prometer calor… enfim hoje pude fazer isso… saio com o banco debaixo do braço, há um minuto era mais uma pessoa dentro do 15, a caminho do trabalho, mas agora os nossos caminhos bifurcam-se, eles seguem em passos elegantes por dentro da rua augusta, eu alento os meus e abro o meu banquinho… escolho um lugar na praça e lembro-me da praia outra vez… quando o areal está demasiado vazio onde é o bom lugar para abrir o chapéu de sol? ando um pouco atrás das pernas e deixo que o sítio me escolha a mim… quando é assim tenho mais coisas que contar… especialmente porque não houve nada que me chamasse a atenção… abro o meu livrinho da escrita e começo por entre as linhas da última coisa que tinha escrito… não decidi, começou assim… escrevo coisas do início da escrita o equivalente a esfregar as mãos ou os pés, esticar os braços ou fechar os olhos… olho o telemóvel… a rota deve estar a passar por aqui… Espero a rota ou começo a rota? nada pode estar lá para eu esperar se eu não estiver implicada no seu começo… parece-me evidente para qualquer jardineiro, mas pouco intuitivo para quem o trabalho seja baseado numa linha de montagem… seja ela de pensamento ou de automóveis…
Apanho a rota a meio caminho, uma novidade… no fundo quando saio todos os dias na praça do comércio, aquela imensidão de chão branco lembra-me sempre uma praia e quando desço do 15 e o corpo fica assim de frente para o rio, por momentos cola-se a recordação dos verões de dias intermináveis de praia, a areia debaixo dos chinelos e a toalha à volta dos ombros porque de manhã mesmo de manhãzinha ainda fazia frio apesar do sol prometer calor… enfim hoje pude fazer isso… saio com o banco debaixo do braço, há um minuto era mais uma pessoa dentro do 15, a caminho do trabalho, mas agora os nossos caminhos bifurcam-se, eles seguem em passos elegantes por dentro da rua augusta, eu alento os meus e abro o meu banquinho… escolho um lugar na praça e lembro-me da praia outra vez… quando o areal está demasiado vazio onde é o bom lugar para abrir o chapéu de sol? ando um pouco atrás das pernas e deixo que o sítio me escolha a mim… quando é assim tenho mais coisas que contar… especialmente porque não houve nada que me chamasse a atenção… abro o meu livrinho da escrita e começo por entre as linhas da última coisa que tinha escrito… não decidi, começou assim… escrevo coisas do início da escrita o equivalente a esfregar as mãos ou os pés, esticar os braços ou fechar os olhos… olho o telemóvel… a rota deve estar a passar por aqui… Espero a rota ou começo a rota? nada pode estar lá para eu esperar se eu não estiver implicada no seu começo… parece-me evidente para qualquer jardineiro, mas pouco intuitivo para quem o trabalho seja baseado numa linha de montagem… seja ela de pensamento ou de automóveis…
Sr. João (escrito do projecto pedras 2012 - pessoas e lugares) - 19/fev/2012
No centro de dia pairava uma energia esquisita… algum faz de conta de quem não quer dizer o que sente, pois talvez já tenha sentido vezes demais e nunca percebeu realmente o que é que se sente… O Sr. João já não está mais connosco, desapareceu este fim de semana, levado pelas pernas que disseram ao resto do corpo que era tempo de ir embora… uma septicemia… a informação aparece assim de rajada numa só frase, mas vai-se pousando em mim como as folhas do outono. Não sei também o que é que sinto, sinto que é tão justo ir ali porque sim, descascar batatas ou conversar… neste dia não havia batatas… ou então disseram que não havia por sermos só duas e talvez hoje fosse mesmo preciso só conversar como quem corta batatas, assim olhando de lado para com quem falamos afinando a fala com a precisão da mão na batata. Sento-me em frente à Lourdes, a Lourdes não queria falar, queria estar ali, não queria contar histórias porque não se lembrava de nenhuma, só daquelas que não queria contar nem a ela própria… a outra Lourdes sentada ao pé desta Lourdes também não… Diz-me: As Lourdes não têm sorte nenhuma, quem se chama Lourdes não tem sorte nenhuma na vida. trabalhei numa casa onde havia três Lourdes, eu era a terceira. Era uma alfaiataria… os alfaiates são todos doentes dos nervos porque o trabalho permite isso… as minhas duas patroas eram lourdes… Os Fernandos também não têm sorte nenhuma… é por causa do Santo António… ele antes de se chamar António chamava-se Fernando… Fernando Midões, mas depois por causa do inimigo, daqueles que não acreditavam em Deus nem em nada, ele mudou de nome para António… O Santo António tinha um livro, andou no mar e não se molhou, de histórias que ele contava… Santo António era de Lisboa, mas depois foi para Pádua… ficou António de Pádua, mas era Ferndando de Midões… assim nunca mais ninguém o conheceu… A outra Lourdes esteve sempre ali, quando disseram que era para ir almoçar, ela fez o gesto de quem se ia levantar, eu perguntei-lhe: Então já se vai embora? eu estive aqui sempre consigo… eu sei! ela respondeu… e eu sei que ela sabia… O Sr. João ainda está por aqui…
margarida
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